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O papel
dos MCM (meios de comunicaçao de massa) dentro desse processo
vem sendo especialmente destacado por outra importante voz, a
do pensador italiano Gianni Vattimo. Em seu livro A
sociedade transparente(21), ele nos oferece um vigorosa diagnose da
situação, mesmo que sob um ponto de vista, por opção,
panorâmico. Ali o atual status quo é caracterizado
como sendo o da emergência do que Vattimo chama de uma 'sociedade
da comunicação generalizada'.
De um modo ou de outro, é difícil negar que uma
das ocorrências marcantes da contemporaneidade não
tenha sido a proliferação dos meios técnicos
de comunicação e, a partir dela,
a consolidação simbólica de uma fileira de
'neomitos', entre eles, o do tecnicismo redentor.
Hodiernamente, sugere ainda ele, quase tudo teria se tornado (como
condição de visibilidade, de existência ´densa´)
um objeto ou alvo
de comunicação. Associando tal
fenômeno (o
da disseminação desenfreada da informação factual ou mesmo ´factóide´) com o da emergência dos vários
pluralismos diccionais típicos do momento 'pós-moderno',
ele igualmente nos chama a atenção para a estratégica
confluência entre o fim do colonialismo histórico (embora um novo neocolonialismo
esteja de vento em popa, sempre mais eficiente do que antes, enquanto
evento), sobretudo no pós-guerra, e o desenvolvimento
acelerado dos sistemas de comunicação globalizada.
Tal confluência resultou na viabilização de
um cenário em que um número indefinido de micronarrativas
está sendo implementado, o que significa dizer, não
só fabricado como também constantemente reciclado
e reforçado.
Como uma alternativa ao que Baudrillard chamou belamente
de 'orgia'(22) -o momento explosivo
da modernidade, o da liberação em
todos os domínios (...) (o da) assunção de todos
os modelos de representação e de anti-representação(23), que teria coincidido
com o período da grande expansão modelar do ocidente
e com a hegemonia de seu projeto
megaimperialista-
estaríamos vivenciando, recentemente, um momento 'pós-orgiástico',
um em que (percorrendo) todos os caminhos da produção
e da superprodução virtual de signos, de mensagens,
de ideologias, de prazeres, (estando) hoje tudo liberado, o jogo
já feito, nos encontraríamos, coletivamente, diante
da pergunta crucial: o que fazer (...)(24)? Crise da história, de um figura
dominante da história, de uma visão cêntrica da história...
Miopia que passou a encará-la como uma movimentação
longínqua rumo a uma rigorosa racionalização:
a do 'progresso'.
Os meios
eletrônicos de comunicação, como não
poderia deixar de ser, tem gerado várias alterações
em nossa sensibilidade. Passou a ser impossível não
perceber o mundo à nossa volta de uma outra maneira, ou
seja, segundo coordenadas muito frescas. Estamos nos referindo
a próteses poderosas que não
só nos permitem uma visão íntima e detalhada
do real, como também nos acenam com a possibilidade de
brincarmos um pouco com isso, de recriarmos a própria realidade (convertendo-a numa espécie
de trans-realidade ou, como prefere Baudrillard, numa hiper-realidade) segundo desígnios
fascinantes: lúdicos, científicos, mercadológicos,
etc.
Refiro-me aqui, entre outras coisas, a um urdimento de simulacros multiplicados,
multiplicáveis e multiplicantes cujo impacto sobre a teoria
e a prática pedagógicas não poderia também
ser menos desconcertante. Não há como negar que
algumas das alterações se prestam a nos excitar
muito: a tendência é que as escolas saiam, progressivamente,
das ´famigeradas´ (seriam
isso mesmo?)
salas de aula para se nutrirem e reforçarem (ou descaracterizarem?) em novos espaços
onde o perigo residirá in essentia em sua capacidade
de reproduzir identidades, inteiramente reestruturadas,
de si mesmas e de seus personagens fundamentais.
Em meio a uma blitz de signos sem qualquer espessura (com destaque, entre eles,
para os que a própria tecnologia propõe de si),
formadores e formandos, educadores e educandos, ensinantes e aprendentes, vão,
aos poucos, perdendo a capacidade de dialetizar com o concretum
das situações, perdendo também, infortunadamente,
a sensibilidade para a teorização. Isso se
torna grave na medida que eles acabam não mais se percebendo
como sujeitos produtores de sentido,
e sim como meros decodificadores da tríplice burocracia
da lei, do contrato e da instituição(25). Seria como simples
clones do grande 'código' que se descaracterizariam como
educadores-pensadores, permitindo, para piorar a coisa,
o aviltamento da própria cena formativo-pedagógica
em sua acepção nobre e urgente de espaço
de formação fundante.
Na esteira de Haraway, urge sim desconfiar dos rumores, plantados
por alguns comunicólogos, de que, sendo uma práxis
e um saber culturalmente neutros, a técnica e a tecnologia
só não seriam positivas, só não seriam
emancipatórias, se assim o quiséssemos, se assim
o permitíssemos; de que sua influência deve ser
medida sobretudo por seu nível de uso (intensivo ou não) em sala de
aula; de que elas são tão-somente um outro instrumento
(dos mais
poderosos, é claro) à disposição de
professores e alunos. Como afirma Apple,
"a nova tecnologia não
se resume a uma simples reunião de máquinas e de seus respectivos softwares.
Ela encarna um forma (perigosa) de pensamento que, na prática,
orienta uma pessoa a se aproximar do mundo de uma determinada
maneira. Os computadores subtendem, portanto, maneiras de pensar
que, sob as atuais condições educacionais, são
primacialmente técnicas. Quanto mais as novas tecnologias
transformam a sala de aula em sua própria imagem, mais
uma lógica da técnica virá substituir o discernimento
crítico, político e ético. O discurso na
sala de aula centrar-se-á na técnica (na forma)
e não no conteúdo que, de fato, importa. Uma vez
mais o 'como' substituirá o 'por que'..."(26)
Diante
deste quadro, resta finalmente perguntar: como deve proceder
um educador-pensador? O que vem a ser um educador-pensador hoje
em dia? Pois, mais do que nunca, se faz necessária uma
tomada de posição não somente por parte
dele, mas de cada de um nós, (indiscutivelmente) envolvidos, em maior ou menor
grau -de bom grado ou a contragosto- pela voragem informacional
que, aos poucos, vai tragando nossa capacidade de gerar e processar
conceitos. O que pode um educador-pensador fazer, assim como
o jovem educador, que os velhos não puderam ou não
quiseram? Certamente não bastará acomodar-se ao
simpático ramerrão dos tecnicismos do 'como' e
do 'quanto'.
É preciso voltar-se a adquirir o hábito do afastamento
e, perfurando o problema como um aríete, acolher no branco
da distância o que talvez esteja ocorrendo demasiadamente
perto, com cores em demasia... Só assim será possível
avaliar o poder de fogo desse outro desafio e, aí sim,
compartilhar ou não de seus esquemas de demarcação.
Por ora não basta dizer: não, eu não quero
por que não quero ou devo aceitar isso. Posta de lado a
rigidez do fato, faltará ao educador-pensador -e não
somente em relação ao tecnicismo- produzir nessa
hora enunciados apenas seus e, voluntariamente, falar de si mesmo,
sobre seus próprios limites, desejos e paixões.
Sem texto, sem discursividade, a educação é nada ou
muito pouco, um grão de areia na ventania do pragma
capitalista,
inábil para desempenhar sua função formativa,
decisiva para que a civilização volte a ter rumos.
Se a tecnologia estiver, inexoravelmente, no horizonte de nossa
cultura, se for ela, de
fato, a nossa nova aurora -e ao que tudo indica já o está
sendo, o será de qualquer jeito- nem por isso deveremos
aceitar seus excessos, cometê-los em seu nome contra
nós mesmos, abrir mão de conquistar direitos como
se isso fosse natural. Mesmo que nos dê muito trabalho,
que demande uma desconfortável sensação de
fadiga, caberá aos que se propõem pensar (entre eles, repito, sem dúvida,
o nosso educador-pensador) não o acolhimento fácil
de instigantes devires, mas um enfrentamento duro de questões,
um olhar sempre quente, e atento, para as glaciais artimanhas
do código.
Notas:
21) Gianni Vattimo,
A sociedade transparente, pp. 9-19.
22) Jean Baudrillard, A transparência do mal, pp. 9-19.
23) Id. ibid. p. 9.
24) Id. ibid.
25) Gilles Deleuze, "Pensamento nômade", p. 58
26) Michael Apple, "The new technology: Is it part of the
solution or part of the problem in education?", p. 65.
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RESUMO
O crescente fascínio
que as novas técnicas e tecnologias vêm exercendo
sobre as sociedades contemporâneas - fascínio que
as faz serem amiúde tratadas como práticas e saberes
autojustificáveis - pode conduzir aquelas sociedades a
um perigoso embotamento simbólico em relação
a si mesmas, ou seja, aos seus códigos, valores e potencialidades
mais elementares. Nesse contexto, uma educação
emancipatória pode vir a exercer um papel decisivo para
uma retomada de consciência relativamente ao problema.
Isto deverá acontecer, sobretudo, mediante a atuação
de educadores-pensadores aptos a fornecerem os subsídios
conceituais mínimos para a referida retomada.
Palavras-chave:
Educação, cultura, tecnologia.
ABSTRACT
Title: The good
question of today: The role of education in a technicist society
Author: Jorge Lucio de Campos
The increasing
fascination exerted by the new techniques and technologies on
contemporary societies - fascination that treat them like self-justifiable
practices and knowledges - can drive those societies to a dangerous
symbolic unawareness regarding themselves, that is, to their
most elementary codes, values and potentialities. In this context,
an emancipative education may play a decisive role for a critical
reconsideration of the problem. This might happen, above all,
by the performance of 'thinkers-educators' able to provide minimum
conceptual foundations for that reconsideration.
Keywords: Education,
culture, technology.
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