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Amir Hamed
ISSN 1688-1672

 



ARTE - ANTIARTE - VANGUARDA - INFORMAÇÄO -

Com um salto de reviver: a arte, a queda, a diferença

Jorge Lucio de Campos
O mundo inteiro padece de uma inanição crônica causada, sobretudo, pelo excesso de informações e pela paralela incapacidade de processá-la. Fabrica-se, a rodo, informações, mas não se garante qualquer conhecimento. Faltam todo tipo de critérios, de intenções, de projetos, de estruturas, de referências...

O real não é verdadeiro, ser já o contenta.
H. Atlan

A meu ver, nada morre em termos de arte. Ou, ao menos, morre totalmente já que um pouco de morte, pensando bem, integra o movimento de vitalização daquilo que não cessa de 'morrer' visando 'reviver' outramente. Ocorre que não consigo vislumbrar uma separação possível entre arte e vida. Como afirma Deleuze em Os intercessores: "o fundamental é como se fazer aceitar pelo movimento de uma grande vaga, de uma coluna de ar ascendente, 'chegar entre' em vez de ser origem de um esforço"(1) Sob esta ótica, só morreria o que teve uma origem, o que partiu de um ponto qualquer só para chegar a outro, num franco retorno às abstrações. Para mim a arte ora dormita, hiberna, se desativa para, em seguida, num movimento rude -uma tipo de pirueta inconseqüente com ares circences- reassumir suas linhas de fuga segundo a lógica das necessidades de um momento dado.

É nesse sentido que os
artistas procuram, meio que inutilmente, garantir a continuidade de um itinerário de autodescoberta que ora afasta (desobriga) ora aproxima (compromete) a obra em relação a um concretum que, por seu lado, corrobora tais situações. Sabemos que hoje os artistas procuram dentro de si, de seus pensamentos e sensibilidades, uma espécie de senha magna para seu ofício, o que os mantém empenhados aos seus motivos, depois de séculos em que estiveram à mercê oscilatória dos jogos práticos dos extratos humanos que os amarraram à sobredeterminação das demandas e utilizações.

A história da arte aponta para uma história da eficiência instrumental das obras: úteis para os xamãs na consecução da ilusão mágica da garantia de sobrevivência; para os sacerdotes no convencimento grupal de que a interlocução e a negociação seriam sempre viáveis, se adequadamente intermediadas, pelos homens certos, com os deuses altíssimos; para os déspotas na docilização da maioria frente à autoridade transcendental de líderes apontados apenas divinamente; para os burocratas religiosos em sua tentativa de territorialização geral do poder em nome da salvação e do aperfeiçoamento das almas pela via dos ritos e dos mitos; para os burgueses ascendentes, como dispositivos legitimadores de uma nova rostificação - libertária, sobretudo tolerante - do exercício disciplinar; enfim, para os especuladores do
capital, ao se verem convertidas em moeda forte graças às artimanhas de narrativas convincentes sobre a inofensividade de seu talento para a conversão dos corpos e das almas em belos corpos e boas almas.

O convívio com o caos continuará sendo uma constante no meio artístico já que a compensação pelas perdas históricas será, provavelmente, muito lenta e essa busca do tempo perdido, tão cedo, terá um fim. Até lá, a música se aproximará ainda mais dos ruídos, a pintura das rasuras, a escultura da amorfia, a literatura da gagueira
(talvez, da afasia) e a poesia, especificamente, da indefinição verbivocovisual. É claro que nada estará, nesse ínterim, morto ou morrendo, mas apenas se preparando para um outro salto de reviver. Aqueles que ficarem atentos ao processo e reunirem informação, paciência e perspicácia suficientes para assimilar suas gradações, poderão, à frente, descrever melhor do que nós, a configuração que, hoje, sob a forma provisória de 'vazio primordial', faz com que tenhamos a impressão de ver as artes apenas como garatujas no horizonte. Estarão desobrigados (que sorte a deles!), portanto, de assumir, como alguns de nossos melhores críticos e especialistas - a não ser açodadamente - o papel, improvisado e desastrado, de adivinhos e profetas.

 

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Em minha cabeça, seria um erro destacar, sob esta ótica, o acontecimento das vanguardas - o impulso de 'estar à frente' de seu próprio tempo, a vontade de intencionalmente 'ir além' das fronteiras estabelecidas (pelos outros, seus contemporâneos) em termos artísticos ou não - da fome epistemológica que caracterizou, a partir de meados do século XVIII, tanto o pensamento da Ilustração quanto as posturas pós-iluminísticas e mesmo contra-iluminísticas. Foi tal fome de poder saber contra os excessos do dogma, fundamentalmente amparada por uma expectativa de constituir outra vez o sentido (só que agora em termos inequivocamente 'legítimos', ou seja, razoáveis e racionais) num primeiro momento, dentro de um circuito mais previsível - o das vanguardas históricas européias de início do século XX- e depois (hoje ainda), num outro, ao contrário, mais derivante- o dos vanguardismos euramericanos do pós-guerra -que conduziu os artistas ao empreendimento utópico de um brave new world de modo a, depois de tê-lo satisfatoriamente compreendido (será mesmo?), aprender a lidar com ele, mediante o desenvolvimento de técnicas de extração eficaz de suas possibilidades ontológicas e de um grande programa de reagenciamento discursivo.

Após terem investido numa separação seletiva dos saberes -àquela altura, na esquina do século XVIII com o XIX, já suficientemente discernidos- o que acabaria fomentando a mesma estratégia em termos estético-artísticos
(cf. Kant, Schiller e os proto-românticos), ou seja, conduzido ao purismo propagandístico de vários grupos diruptivos (caso do cubismo e de suas seguidas semeaduras), pintores e poetas e, um pouco adiante, escultores e arquitetos, apostaram num esgarçamento epistêmico pela via da experimentação e da transgressão puras (caso, por exemplo, do futurismo e do dadaísmo). Foi somente depois desses dois primeiros passos que se tornou viável a realização de um projeto alternativo (agora definitivamente arrostando a Tradição) de reconsideração conceitual da arte, o que, a meu ver, começou a se dar, efetivamente, com os surrealistas e com os abstratos, e que permanece, ainda hoje, em curso - apesar das seguidas, e cada vez mais insolentes, invasões políticas do processo pelo agentes do mercado.

É possível afirmar que o que Home chama de anti-arte em seu
livro(2) ocorreu quase que paralelamente aos desdobramentos -favoráveis ou nem tanto- do projeto purista anteriormente aludidos. Estes se deram, grosso modo, como raspagem, ou melhor, como uma tentativa -de índole contra-iluminística, quase reformista- de se evitar um possível (e provável) naufrágio daquele projeto -o que implicou, cedo ou tarde, numa incômoda sensação de enfado (spleen) frente às suas muitas desmedidas; e como dissidência, ou melhor, como uma rejeição- no âmago do próprio projeto - levado a cabo, já nos últimos três decênios do século XIX, por alguns enfants terribles convictos como Jarry, Lautréamont, Barbey d´Aurevilly, os zutistas etc.

Na verdade, é preciso levar em conta o que o mal-estar civilizacional não tem sido exatamente um 'privilégio' do homem contemporâneo. Sua recorrência em grande parte história do ocidente é inegável, gerada que foi por uma horda de personagens malditos, um pouco esfíngicos até -de bom grado visionários e desajeitados, porém sempre incômodos e virulentos em seus conceitos, valores e ações- e que se espalham, generosamente, pela trama dos séculos. Entre eles, não é dificil lembrar de nomes como os de Empédocles, Diógenes, Savonarola, Owen, Cabet,
Sade, Cope, Proudhon, Fourier e Saint-Simon, além de supor outros -diversos outros- de quem, infelizmente, hoje nem mais temos notícia.

 

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De qualquer modo, transgredir foi sempre algo atraente -mesmo naqueles momentos mais perigosos para os pretendentes à diferença, quando todas as peças da
máquina social pareceriam conspirar numa- nem sempre explícita - tentativa de inibir possíveis desarranjos ou imprevisões. Um grande passo recente foi dado pelos que resolveram, enfim, nomear o processo, numa direta recorrência ao jargão político da época, tendo a palavra avant-garde passado a representar -e adquirido uma visibilidade poderosa sobretudo no espaço das artes- todo um esforço antes efetivo, mas disseminado e abrangente demais para ser levado a sério.

Nesse sentido, o que o futurismo italiano, para citar apenas um caso, representou
(sem deixar de lembrar sua vertente russa e o próprio construtivismo pré-revolucionário de Tatlin e Rodchenko) esteve bem além do que as circunstâncias históricas vieram a determinar depois, ou seja, com a aproximação, por parte de alguns de seus epígonos (principalmente Marinetti), da ideologia fascista. As condições político-econômicas da Itália finissecular influenciaram decisivamente -como não poderia deixar de ser e a par do que também ocorreu na Alemanha com o grupo Die Brücke- o percurso posterior do movimento. Por outro lado, não se deve, sob hipótese alguma, esquecer que os futuristas receberam ab initio uma enérgica influência, advinda do socialismo e do anarquismo, que veio a favorecer demais um páthos inconformista e anti-acadêmico, a meu ver, o seu emblema maior(3).

A
vanguarda morreu como um mega-signo, como uma representação de vastas proporções, sugerida por determinados segmentos da sociedade, na ocasião que consideraram apropriada, como o mais legítimo e sincero relativamente às melhores expectativas de nossa época. Na condição de procedimento pensado, fomentado e posto em prática, primeiramente, no âmago daqueles segmentos (ideologicamente fechados com os burgueses e seu lema tríplice: riqueza, liberdade e poder) e, depois, lançado para as massas, a vanguarda foi um acontecimento tipicamente modernoso, herdeiro das aspirações enciclopedistas por um mundo justo e trasparente(4). Nesse sentido, nunca houve nada na história que se possa qualificar como tal, e nenhum momento celebratório semelhante em termos de abrangência e intensidade. Digo isso, porque certos autores insistem em ver, trans-historicamente, esse impulso para a renovação (ou dinamização) das formas e conceitos. Não concordo, absolutamente, com eles, pois uma das principais características da postura vanguardista tem sido sua excessividade, sua predisposição para o gratuito da experimentação, para o cômico da transgressão, para o ridículo do questionamento, para o agressivo da ruptura, e nunca houve, ao menos numa visão ampla, outros ensejos, antes da virada do século XVIII para o XIX, que favorecessem, de forma tão generosa, tal floração.

Por outro lado, contrariamente aos que vivem anunciando a morte do mundo
(5) -não apenas simbólica, mas também concretamente- creio ser inviável o descarte dessa postura a não ser como imagem -e veja bem: as imagens, hoje em dia, pouco têm a ver com que consideramos serem os fatos, uma vez que os supera, e muito -assim como as palavras- no plano discursivo(6). Prefiro pensar que as atitudes vanguardistas vieram mais a reboque de um amadurecimento de hábitos (no sentido de uma techné da inventividade) do que como um agente provocador de inquietações interessantes e agradáveis do fazer-expressar.

 

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Dentro de tal lógica, entende-se porque, não só no Brasil, mas por toda parte, os inventivos vêm sendo valorizados, procurados, e a inventividade recultivada. O mundo inteiro padece de uma inanição crônica nesse sentido, causada, sobretudo, pelo excesso de informações e pela paralela incapacidade de processá-la. Fabrica-se, a rodo, informações, mas não se garante qualquer conhecimento. Faltam todo tipo de critérios, de intenções, de projetos, de estruturas, de referências... Faltam elementos norteadores, indicadores, mas também as próprias direções
(orientação e ocidentação), bússolas, sextantes, mesmo corpos celestes, vestígios de luz.... Faltam tradições e a aptidão para defendê-las, adaptá-las, renová-las, acuá-las, subvertê-las...

Se, tecnicamente, vivemos um período fabuloso em que as mensagens nunca estiveram tão rentes de nós, tão ao alcance de alguns
(ainda que bem poucos) de nós, de um número surpreendente de nós, outros dispositivos valiosos continuam sendo desperdiçados como a educação formal (e, sobretudo, a informal). Caberia aos responsáveis diretos por essa educação -pais, professores, gestores e chefes de estados, assim como a toda a entourage e o estafe que os alicerçam- agenciar uma nova paideia, novos enlaces, alianças, bodas, cuja missão seria, entre outras, propiciar-nos, em primeira lugar, uma (re)potência de nós mesmos, e, depois (e junto), uma potência de articulação epistêmica que incluiria a filtragem, a escolha e o relacionamento sensato das mensagens flutuantes, de modo a aprendermos a usá-las não só em prol de nossa estética -da relação consigo-, mas também de uma ética -de uma relação com o outro-, em favor de uma utopia com outrem, de uma plena realização, a mais coletiva, comunitária possível.

Com efeito, a busca do novo independe dos rótulos e dos usos deles já feitos. Os brasileiros precisam -sob pena de nunca livrar-se das mazelas de uma condição permanente de nação colonizada- encontrar por si próprios, sem um necessário aconselhamento internacional, um caminho para o país, que seja o mais razoável para o seu acontecimento sociocultural e político-econômico. Só assim conseguirão começar a viabilizar o tão sonhado estágio de autonomia que ainda está longe de se atingir, por ter sido amoldado ab ovo segundo padrões forasteiros: à lusitana, à inglesa, à francesa, à ianque, etc. Mais que isso: se ainda nem conseguimos ser 'modernos', esqueçamos essa fixação alienígena - a mais recente de todas - de sermos 'pós-modernos'. Trata-se de outra festa, animada por muitas canções e fogos de artifício, e que, provavelmente, também dará em nada, a não ser em silêncio e opacidade.

Só pode se dizer 'pós-moderno' quem efetivamente viveu, ao menos, uma sensação
(aponte ela para a realidade ou não) de 'modernidade' (e há quem duvide disso: Latour, por exemplo(7)) caso dos países ditos pós-industrializados. Este, infelizmente ou não, não é o nosso caso, o de um país crescentemente 'esquizofrenizado' numa multiplicidade de situações mal resolvidas e projetos por concluir. O Brasil é asiático, africano e euro-americano na mesma medida em que é pré-histórico, antigo, medieval, e moderno - até pós-moderno - em várias situações e posições, sob diversos ângulos e considerações...

Cabe a nós -e, claro, isso não será nada fácil- o desafio de arrumar, de outro modo, a casa
(éthos), mesmo que leve muito tempo (caberá a gerações que ainda nem nasceram, confirmar o possível acerto da arrumação) e aí sim, após nos situarmos relativamente a nós mesmos, acenarmos para o mundo: "Ei, estamos aqui!" Se, por outro lado, já não dispomos de tanto tempo, pelo outro, sabemos que sempre será possível esculpi-lo, sempre será a hora de refazer a hora...

 

Notas:

(1) G. Deleuze, Conversações, p. 151.

(2) S. Home. Assalto à cultura: Utopia, subversão, guerrilha na (anti)arte do século XX, pp. 13-9.

(3) M. de Micheli. As vanguardas artísticas, pp. 201-27.

(4) A. Touraine, Crítica da modernidade, pp. 69-95.

(5) J. Baudrillard. A ilusão vital, pp. 67-89.

(6) L. C. Fridman, Vertigens pós-modernas: Configurações institucionais contemporâneas, pp. 23-35.

(7) B. Latour, Jamais fomos modernos:Ensaio de antropologia simétrica, pp. 7-17.

Referências bibliográficas:

ARCHER, M. Arte contemporânea (trad. de Alexandre Krug e Valter Lellis Siqueira). São Paulo: Martins Fontes, 2001.
BAUDRILLARD, J. A ilusão vital (trad. de Luciano Trigo). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
BAUDRILLARD, J. A transparência do mal: Ensaio sobre os fenômenos extremos (trad. de Estela dos Santos Abreu). São Paulo: Editora 34, 1990.
DELEUZE, G. Conversações (trad. de Peter Pál Pelbart). São Paulo: Editora 34, 1992.
FRIDMAN, L. C. Vertigens pós-modernas: Configurações institucionais contemporâneas. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.
HEARTNEY, E. Pós-modernismo (trad. de Ana Luiza Dantas Borges). São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
HOLZ, H. H. De la obra de arte a la mercancía (trad. de Juan Valls i Royo). Barcelona: Gustavo Gili, 1979.
HOME, S. Assalto à cultura: Utopia, subversão, guerrilha na (anti)arte do século XX (trad. de Cris Siqueira). São Paulo: Conrad, s/d.
HONNEF, K. Arte contemporânea (trad. de Casa das Línguas). Colonia: Benedikt Taschen, 1992.
LATOUR, B. Jamais fomos modernos: Ensaio de antropologia simétrica (trad. de Carlos Irineu da Costa). São Paulo: Editora 34, 1994.
MICHELI, M. de. As vanguardas artísticas (trad. de Pier Luigi Cabra). São Paulo: Martins Fontes, 1991.
READ, H. A filosofia da arte moderna (trad. de Maria José Miranda). Lisboa: Ulisséia, s/d.
TOURAINE, A. Crítica da modernidade (trad. de Elia Ferreira Edel). Petrópolis: Vozes, 1997.

Resumo: Nada morre em termos de arte já que um pouco de morte integra o movimento de vitalização daquilo que não cessa de 'morrer' visando 'reviver' outramente. Transgredir foi sempre algo atraente - mesmo naqueles momentos mais perigosos - para os pretendentes à diferença. Por outro lado, contrariamente aos que vivem anunciando a morte do mundo - não apenas simbólica, mas também concretamente - é inviável o descarte dessa postura a não ser como imagem.

Palavras chave: Arte, crise, diferença, transgressão.

Abstract: Nothing dies in art since a little of death integrates the movement of vitalization of which doesn't die aiming to 'revive' in another way. To transgress was always something attractive - even in those more dangerous moments - for the pretenders of difference. On the other hand, to the grief of those who live announcing the world's death - not only a simbolical, but also a concrete one - the discard of that posture is unreasonable unless as an image.

Keywords: Art, crisis, difference, transgression.

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