O
real não é verdadeiro, ser já o contenta.
H. Atlan
A meu
ver, nada morre em termos de arte. Ou, ao menos, morre totalmente
já que um pouco de morte, pensando
bem, integra o movimento de vitalização
daquilo que não cessa de 'morrer' visando 'reviver' outramente.
Ocorre que não consigo vislumbrar uma separação
possível entre arte e vida. Como
afirma Deleuze em Os intercessores: "o fundamental
é como se fazer aceitar pelo movimento de uma grande vaga,
de uma coluna de ar ascendente, 'chegar entre' em vez de ser
origem de um esforço"(1) Sob esta ótica, só
morreria o que teve uma origem, o que partiu de um ponto
qualquer só para chegar a outro, num franco
retorno às abstrações. Para mim a
arte ora dormita,
hiberna, se desativa para, em seguida, num movimento rude -uma
tipo de pirueta inconseqüente com ares circences- reassumir
suas linhas de fuga segundo a lógica das necessidades
de um momento dado.
É nesse sentido que os artistas procuram, meio que inutilmente,
garantir a continuidade de um itinerário de autodescoberta
que ora afasta (desobriga)
ora
aproxima (compromete) a obra em
relação a um concretum que, por seu lado,
corrobora tais situações. Sabemos que hoje os artistas
procuram dentro de si, de seus pensamentos e sensibilidades,
uma espécie de senha magna para seu ofício,
o que os mantém empenhados aos seus motivos, depois de
séculos em que estiveram à mercê oscilatória
dos jogos práticos dos extratos humanos que os amarraram
à sobredeterminação das demandas e utilizações.
A história da arte aponta para uma história da
eficiência instrumental das obras: úteis para os
xamãs na consecução da ilusão
mágica da garantia de sobrevivência; para os
sacerdotes no convencimento grupal de que a interlocução
e a negociação seriam sempre viáveis, se
adequadamente intermediadas, pelos homens certos, com os deuses
altíssimos; para os déspotas na docilização
da maioria frente à autoridade transcendental de
líderes apontados apenas divinamente; para os burocratas
religiosos em sua tentativa de territorialização
geral do poder em nome da salvação e do aperfeiçoamento
das almas pela via dos ritos e dos mitos; para os burgueses
ascendentes, como dispositivos legitimadores de uma nova
rostificação - libertária, sobretudo
tolerante - do exercício disciplinar; enfim, para os especuladores
do capital, ao se verem
convertidas em moeda forte graças
às artimanhas de narrativas convincentes sobre a inofensividade
de seu talento para a conversão dos corpos e das almas
em belos corpos e boas almas.
O convívio com o caos continuará sendo uma
constante no meio artístico já que a compensação
pelas perdas históricas será, provavelmente, muito
lenta e essa busca do tempo perdido, tão cedo, terá
um fim. Até lá, a música se aproximará
ainda mais dos ruídos, a pintura das rasuras,
a escultura da amorfia, a literatura da gagueira
(talvez,
da afasia) e a poesia, especificamente,
da indefinição verbivocovisual. É
claro que nada estará, nesse ínterim, morto ou
morrendo, mas apenas se preparando para um outro salto de
reviver. Aqueles que ficarem atentos ao processo e reunirem
informação, paciência e perspicácia
suficientes para assimilar suas gradações, poderão,
à frente, descrever melhor do que nós, a configuração
que, hoje, sob a forma provisória de 'vazio primordial',
faz com que tenhamos a impressão de ver as artes apenas
como garatujas no horizonte. Estarão desobrigados
(que sorte
a deles!),
portanto, de assumir, como alguns de nossos melhores críticos
e especialistas - a não ser açodadamente - o papel,
improvisado e desastrado, de adivinhos e profetas.
2
Em
minha cabeça, seria um erro destacar, sob esta ótica,
o acontecimento das vanguardas - o impulso de 'estar à
frente' de seu próprio tempo, a vontade de intencionalmente
'ir além' das fronteiras estabelecidas (pelos outros, seus contemporâneos) em termos
artísticos ou não - da fome epistemológica
que caracterizou, a partir de meados do século XVIII,
tanto o pensamento da Ilustração quanto as posturas
pós-iluminísticas e mesmo contra-iluminísticas.
Foi tal fome de poder saber contra os excessos do dogma,
fundamentalmente amparada por uma expectativa de constituir outra
vez o sentido (só
que agora em termos inequivocamente 'legítimos', ou seja,
razoáveis e racionais) num primeiro momento, dentro
de um circuito mais previsível - o das vanguardas
históricas européias de início do século
XX- e depois (hoje
ainda),
num outro, ao contrário, mais derivante- o dos
vanguardismos euramericanos do pós-guerra -que conduziu
os artistas ao empreendimento utópico de um brave new
world de modo a, depois de tê-lo satisfatoriamente
compreendido (será
mesmo?),
aprender a lidar com ele, mediante o desenvolvimento de técnicas
de extração eficaz de suas possibilidades ontológicas
e de um grande programa de reagenciamento discursivo.
Após terem investido numa separação seletiva
dos saberes -àquela altura, na esquina do século
XVIII com o XIX, já suficientemente discernidos- o que
acabaria fomentando a mesma estratégia em termos estético-artísticos
(cf. Kant,
Schiller e os proto-românticos), ou seja, conduzido ao purismo
propagandístico de vários grupos diruptivos (caso do cubismo e de
suas seguidas semeaduras), pintores e poetas e, um pouco adiante,
escultores e arquitetos, apostaram num esgarçamento epistêmico
pela via da experimentação e da transgressão
puras (caso,
por exemplo, do futurismo e do dadaísmo). Foi somente depois desses
dois primeiros passos que se tornou viável a realização
de um projeto alternativo (agora
definitivamente arrostando a Tradição) de reconsideração
conceitual da arte, o que, a meu ver, começou
a se dar, efetivamente, com os surrealistas e com os abstratos,
e que permanece, ainda hoje, em curso - apesar das seguidas,
e cada vez mais insolentes, invasões políticas
do processo pelo agentes do mercado.
É possível afirmar que o que Home chama de anti-arte
em seu livro(2) ocorreu quase
que paralelamente aos desdobramentos -favoráveis ou nem
tanto- do projeto purista anteriormente aludidos. Estes se deram,
grosso modo, como raspagem, ou melhor, como uma tentativa
-de índole contra-iluminística, quase reformista-
de se evitar um possível (e provável) naufrágio daquele projeto
-o que implicou, cedo ou tarde, numa incômoda sensação
de enfado (spleen)
frente
às suas muitas desmedidas; e como dissidência,
ou melhor, como uma rejeição- no âmago do
próprio projeto - levado a cabo, já nos últimos
três decênios do século XIX, por alguns enfants
terribles convictos como Jarry, Lautréamont, Barbey d´Aurevilly,
os zutistas etc.
Na verdade, é preciso levar em conta o que o mal-estar
civilizacional não tem sido exatamente um 'privilégio'
do homem contemporâneo. Sua recorrência em grande
parte história do ocidente é inegável, gerada
que foi por uma horda de personagens malditos, um pouco
esfíngicos até -de bom grado visionários
e desajeitados, porém sempre incômodos e virulentos
em seus conceitos, valores e ações- e que se espalham,
generosamente, pela trama dos séculos. Entre eles, não
é dificil lembrar de nomes como os de Empédocles,
Diógenes, Savonarola, Owen, Cabet, Sade, Cope, Proudhon,
Fourier e Saint-Simon, além de supor outros -diversos
outros- de quem, infelizmente, hoje nem mais temos notícia.
3
De qualquer modo, transgredir foi sempre algo atraente -mesmo
naqueles momentos mais perigosos para os pretendentes à
diferença, quando todas as peças da máquina
social
pareceriam conspirar numa- nem sempre explícita - tentativa
de inibir possíveis desarranjos ou imprevisões.
Um grande passo recente foi dado pelos que resolveram, enfim,
nomear o processo, numa direta recorrência ao jargão
político da época, tendo a palavra avant-garde
passado a representar -e adquirido uma visibilidade poderosa
sobretudo no espaço das artes- todo um esforço
antes efetivo, mas disseminado e abrangente demais para ser levado
a sério.
Nesse sentido, o que o futurismo italiano, para citar apenas
um caso, representou (sem
deixar de lembrar sua vertente russa e o próprio construtivismo
pré-revolucionário de Tatlin e Rodchenko) esteve bem
além do que as circunstâncias históricas
vieram a determinar depois, ou seja, com a aproximação,
por parte de alguns de seus epígonos (principalmente Marinetti), da ideologia
fascista. As condições político-econômicas
da Itália finissecular influenciaram decisivamente -como
não poderia deixar de ser e a par do que também
ocorreu na Alemanha com o grupo Die Brücke- o percurso
posterior do movimento. Por outro lado, não se deve, sob
hipótese alguma, esquecer que os futuristas receberam
ab initio uma enérgica influência, advinda
do socialismo e do anarquismo, que veio a favorecer demais um
páthos inconformista
e anti-acadêmico, a meu ver, o seu emblema maior(3).
A vanguarda morreu como
um mega-signo, como uma representação de vastas
proporções, sugerida por determinados segmentos
da sociedade, na ocasião que consideraram apropriada,
como o mais legítimo e sincero relativamente às
melhores expectativas de nossa época. Na condição
de procedimento pensado, fomentado e posto em prática,
primeiramente, no âmago daqueles segmentos (ideologicamente fechados
com os burgueses e seu lema tríplice: riqueza, liberdade e poder) e, depois,
lançado para as massas, a vanguarda foi um acontecimento
tipicamente modernoso, herdeiro das aspirações
enciclopedistas por um mundo justo e trasparente(4). Nesse sentido,
nunca houve nada na história que se possa qualificar como
tal, e nenhum momento celebratório semelhante em termos
de abrangência e intensidade. Digo isso, porque certos
autores insistem em ver, trans-historicamente, esse impulso
para a renovação (ou
dinamização) das formas e conceitos. Não concordo,
absolutamente, com eles, pois uma das principais características
da postura vanguardista tem sido sua excessividade, sua
predisposição para o gratuito da experimentação,
para o cômico da transgressão, para o ridículo
do questionamento, para o agressivo da ruptura, e
nunca houve, ao menos numa visão ampla, outros ensejos,
antes da virada do século XVIII para o XIX, que favorecessem,
de forma tão generosa, tal floração.
Por outro lado, contrariamente aos que vivem anunciando a morte
do mundo(5) -não
apenas simbólica, mas também concretamente- creio
ser inviável o descarte dessa postura a não ser
como imagem -e veja bem: as imagens, hoje em dia, pouco
têm a ver com que consideramos serem os fatos, uma
vez que os supera, e muito -assim como as palavras- no plano
discursivo(6). Prefiro pensar
que as atitudes vanguardistas vieram mais a reboque de um amadurecimento
de hábitos (no
sentido de uma techné da inventividade) do que como
um agente provocador de inquietações interessantes
e agradáveis do fazer-expressar.
4
Dentro de tal lógica, entende-se porque, não só
no Brasil, mas por toda parte, os inventivos vêm
sendo valorizados, procurados, e a inventividade recultivada.
O mundo inteiro padece de uma inanição crônica
nesse sentido, causada, sobretudo, pelo excesso de informações
e pela paralela incapacidade de processá-la. Fabrica-se,
a rodo, informações, mas não se garante
qualquer conhecimento. Faltam todo tipo de critérios,
de intenções, de projetos, de estruturas, de referências...
Faltam elementos norteadores, indicadores, mas também
as próprias direções (orientação e ocidentação), bússolas,
sextantes, mesmo corpos celestes, vestígios de luz....
Faltam tradições e a aptidão para defendê-las,
adaptá-las, renová-las, acuá-las, subvertê-las...
Se, tecnicamente, vivemos um período fabuloso em que as
mensagens nunca estiveram tão rentes de nós, tão
ao alcance de alguns (ainda
que bem poucos)
de nós, de um número surpreendente de nós,
outros dispositivos valiosos continuam sendo desperdiçados
como a educação formal (e, sobretudo, a informal). Caberia aos
responsáveis diretos por essa educação -pais,
professores, gestores e chefes de estados, assim como a toda
a entourage e o estafe que os alicerçam- agenciar
uma nova paideia, novos enlaces, alianças, bodas,
cuja missão seria, entre outras, propiciar-nos, em primeira
lugar, uma (re)potência de nós mesmos, e, depois
(e junto), uma potência
de articulação epistêmica que incluiria
a filtragem, a escolha e o relacionamento
sensato das mensagens flutuantes, de modo a aprendermos a usá-las
não só em prol de nossa estética
-da relação consigo-, mas também de uma
ética -de uma relação com o outro-,
em favor de uma utopia com outrem, de uma plena realização,
a mais coletiva, comunitária possível.
Com efeito, a busca do novo independe dos rótulos e dos
usos deles já feitos. Os brasileiros precisam -sob pena
de nunca livrar-se das mazelas de uma condição
permanente de nação colonizada- encontrar por si
próprios, sem um necessário aconselhamento internacional,
um caminho para o país, que seja o mais razoável
para o seu acontecimento sociocultural e político-econômico.
Só assim conseguirão começar a viabilizar
o tão sonhado estágio de autonomia que ainda está
longe de se atingir, por ter sido amoldado ab ovo segundo
padrões forasteiros: à lusitana, à inglesa,
à francesa, à ianque, etc. Mais que isso: se ainda
nem conseguimos ser 'modernos', esqueçamos essa fixação
alienígena - a mais recente de todas - de sermos 'pós-modernos'.
Trata-se de outra festa, animada por muitas canções
e fogos de artifício, e que, provavelmente, também
dará em nada, a não ser em silêncio e opacidade.
Só pode se dizer 'pós-moderno' quem efetivamente
viveu, ao menos, uma sensação (aponte ela para a realidade ou não) de 'modernidade'
(e há quem duvide
disso: Latour, por exemplo(7)) caso dos países ditos pós-industrializados.
Este, infelizmente ou não, não é o nosso
caso, o de um país crescentemente 'esquizofrenizado' numa
multiplicidade de situações mal resolvidas e projetos
por concluir. O Brasil é asiático, africano e euro-americano
na mesma medida em que é pré-histórico,
antigo, medieval, e moderno - até pós-moderno -
em várias situações e posições,
sob diversos ângulos e considerações...
Cabe a nós -e, claro, isso não será nada
fácil- o desafio de arrumar, de outro modo, a casa
(éthos), mesmo que
leve muito tempo (caberá
a gerações que ainda nem nasceram, confirmar o
possível acerto da arrumação) e aí
sim, após nos situarmos relativamente a nós mesmos,
acenarmos para o mundo: "Ei, estamos aqui!" Se, por
outro lado, já não dispomos de tanto tempo, pelo
outro, sabemos que sempre será possível esculpi-lo,
sempre será a hora de refazer a hora...
Notas:
(1) G. Deleuze,
Conversações, p. 151.
(2) S. Home.
Assalto à cultura: Utopia, subversão, guerrilha
na (anti)arte do século XX, pp. 13-9.
(3) M. de Micheli.
As vanguardas artísticas, pp. 201-27.
(4) A. Touraine,
Crítica da modernidade, pp. 69-95.
(5) J. Baudrillard.
A ilusão vital, pp. 67-89.
(6)
L. C. Fridman,
Vertigens pós-modernas: Configurações
institucionais contemporâneas, pp. 23-35.
(7) B. Latour,
Jamais fomos modernos:Ensaio de antropologia simétrica,
pp. 7-17.
Referências
bibliográficas:
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contemporânea (trad. de Alexandre Krug e Valter Lellis
Siqueira). São Paulo: Martins Fontes, 2001.
BAUDRILLARD, J. A ilusão vital (trad. de Luciano Trigo).
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
BAUDRILLARD, J. A transparência do mal: Ensaio sobre os
fenômenos extremos (trad. de Estela dos Santos Abreu).
São Paulo: Editora 34, 1990.
DELEUZE, G. Conversações (trad. de Peter Pál
Pelbart). São Paulo: Editora 34, 1992.
FRIDMAN, L. C. Vertigens pós-modernas: Configurações
institucionais contemporâneas. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
2000.
HEARTNEY, E. Pós-modernismo (trad. de Ana Luiza Dantas
Borges). São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
HOLZ, H. H. De la obra de arte a la mercancía (trad. de
Juan Valls i Royo). Barcelona: Gustavo Gili, 1979.
HOME, S. Assalto à cultura: Utopia, subversão,
guerrilha na (anti)arte do século XX (trad. de Cris Siqueira).
São Paulo: Conrad, s/d.
HONNEF, K. Arte contemporânea (trad. de Casa das Línguas).
Colonia: Benedikt Taschen, 1992.
LATOUR, B. Jamais fomos modernos: Ensaio de antropologia simétrica
(trad. de Carlos Irineu da Costa). São Paulo: Editora
34, 1994.
MICHELI, M. de. As vanguardas artísticas (trad. de Pier
Luigi Cabra). São Paulo: Martins Fontes, 1991.
READ, H. A filosofia da arte moderna (trad. de Maria José
Miranda). Lisboa: Ulisséia, s/d.
TOURAINE, A. Crítica da modernidade (trad. de Elia Ferreira
Edel). Petrópolis: Vozes, 1997.
Resumo: Nada morre em termos
de arte já que um pouco de morte integra o movimento de
vitalização daquilo que não cessa de 'morrer'
visando 'reviver' outramente. Transgredir foi sempre algo atraente
- mesmo naqueles momentos mais perigosos - para os pretendentes
à diferença. Por outro lado, contrariamente aos
que vivem anunciando a morte do mundo - não apenas simbólica,
mas também concretamente - é inviável o
descarte dessa postura a não ser como imagem.
Palavras chave: Arte, crise, diferença,
transgressão.
Abstract: Nothing dies in art
since a little of death integrates the movement of vitalization
of which doesn't die aiming to 'revive' in another way. To transgress
was always something attractive - even in those more dangerous
moments - for the pretenders of difference. On the other hand,
to the grief of those who live announcing the world's death -
not only a simbolical, but also a concrete one - the discard
of that posture is unreasonable unless as an image.
Keywords: Art, crisis, difference,
transgression.
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